Percebo a perplexidade de muitos com o facto de as missas públicas só poderem ser celebradas no fim de Maio, e arrisco dizer que a partilho, pelo menos em parte. Fico triste e preocupado e, por isso, também estou a pensar no que possa ou deva fazer. Há gente indignada que convido a ter paciência e serenidade, mas temo que seja mais grave o facto de haver quem já nem sequer se importa, e está bem sem a Missa. É isso que mais me aflige.
E esses são os muitos milhares que nem sequer a missa on-line vêem, não rezam mais e não estão aflitos. Alguns estudos indicam que muitos católicos praticantes correm o risco de se habituarem a viver sem Missa. Os milhares de pessoas que vêem a missa na televisão ou on-line são muito menos dos que costumavam ir à missa. E mesmo os que participam on-line, e apesar de muitos estarem a aproveitar bem esses momentos e, a crescer na relação com Jesus Cristo, não fazem a mesma experiência do que seria estar na Missa. Estou profundamente convencido que, assim como ir à Missa tem efeito na vida das pessoas não ir também.
Gostava de partilhar alguns pensamentos que tenho tido sobre a razoabilidade de pedir que a missa comece a ser celebrada comunitariamente mais cedo, indicar alguns pontos que podem influenciar um olhar enviusado sobre o problema e propor algo para se fazer.
Porquê e como pedir para termos Missa mais cedo?
Jesus, no Evangelho, é muito claro: “quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna” e “a minha carne é verdadeira comida” (Jo 6, 54-55). A história da Igreja e a nossa história pessoal ensina-nos a importância da vida sacramental. Sem sacramentos, a vida cristã enfraquece ou desaparece mesmo. Basta ver o norte da Europa, hoje em dia muito mais secularizado. Vivi 10 anos nesse ambiente e posso dizer que ali o individualismo e o materialismo estão muito mais difundidos porque também a prática religiosa é mesmo muito menor. Queremos uma Igreja capaz de amar com a caridade como Jesus nos mandou e de acreditar profundamente? Precisamos dos sacramentos. A caridade que não se alimenta da fé e a fé que não se alimenta dos sacramentos – confissão e Eucaristia – ficam reduzidas a sentimentalismo ou a uma distante solidariedade.
O hedonismo, o materialismo, as zangas, tudo isso aumenta quando estamos mais distantes de Deus e o secularismo cresce na medida em que as pessoas se habituam a viver como se Deus não existisse. A crise económica, o desemprego e todos os problemas sociais, para serem enfrentados e ultrapassados, precisam de gente certa do amor de Deus e alimentada pela Eucaristia. Não é só com boa vontade que o mundo fica melhor. Três meses na vida de centenas de milhares de pessoas sem missa semanal, sem encontro com a comunidade e sem comunhão, até poderia ser possível se fosse necessário, mas torna-se perigoso se é desleixo pastoral.
Pode, no entanto, ser útil recordar que Deus ajuda mesmo sem a Missa, como testemunham tantos cristãos impedidos de participar na missa por questões de saúde ou de perseguição, mas nesses casos há graças especiais. Julgo que para tanta gente, estes dias confinados em que houve necessidade de se fazer um jejum eucarístico tiveram também um valor que não deve ser esquecido. Muitos testemunhos dizem-nos que foi ocasião de aprofundar a fé. E seria uma pena se desta crise e de todas estas discussões não saíssemos mais convertidos. Agora, se no início da crise pode ter sido justificável não haver missas e o povo de Deus mostrou-se heroico, aceitando isso com docilidade, quando já se abrem lojas e museus, não poder ir à missa faz pensar que há alguma coisa estranha a influenciar quem decide. Sem entrar em lógicas de teorias da conspiração, já não será errado dizer que alguma insensibilidade por parte de quem não tem fé ao que os sacramentos significam é natural.
Tendo como certa a verdade de fé de que a Missa é necessária, espero que todos os que estão mesmo tristes com esta decisão, saibam quanto é importante não ficar à espera da Missa para aprofundar a relação com Deus. Ninguém deve abrandar a devoção nem desistir de fazer actos de comunhão espiritual e de procurar evitar o pecado suplicando com um acto de contrição sincero o perdão e a força de Deus, prometendo a Deus confessar-se quanto antes.
Unidade da pessoa e unidade da Igreja
A minha percepção do que se passa é que veio ao de cima um erro antropológico que estava latente há muito tempo e agora se torna evidente. Esqueceu-se que o ser humano é um todo, uma unidade, certamente complexa e com várias dimensões, mas não é uma soma de partes justapostas. Corpo e espírito, vida interior e relações sociais não são dimensões do homem que se confundem, mas também não se separam. Não podemos pensar que o espírito só precisa de ser cuidado depois do corpo estar tranquilo! Nem podemos pensar que o corpo não interessa. O olhar da fé é unitário.
O cristão, idealmente, à maneira de Jesus Cristo, olha para o todo da pessoa. Olha para a saúde, para a economia, para o trabalho, para as relações sociais, para a vida espiritual como aspectos completamente interligados e não os separa.
Há ainda uma nota que devemos sublinhar. Um dos efeitos da Missa e da comunhão sacramental é a unidade da pessoa, mas também fortalece a unidade da Igreja. É em Cristo que estamos unidos. Logo, um dos efeitos da ausência de Eucaristia na vida das pessoas pode ser o aumento das divisões na Igreja, quer ao nível local quer na igreja doméstica. Esta falta de unidade pode apresentar-se como indiferença em alguns casos, levando as pessoas a desligarem-se da comunidade, e noutros pode gerar tensões. De qualquer forma é sempre mau. E temo que já estamos a sentir essa falta de unidade. Basta ver o modo acusatório de algumas declarações, como quando se diz que a tristeza e indignação por só haver Missa no fim de Maio é um exagero por parte de um sector mais conservador da Igreja. Não é justo dizer, como, por vezes, até dentro da Igreja se ouve, que, por agora, a grande preocupação devem ser a saúde e a economia e que só depois deverão entrar as questões espirituais, como se entre elas não houvesse relação e estas fossem secundárias. Mas também não é justo achar que a saúde não é prioridade e afirmar que quem se preocupa com a saúde e, está com medo do contágio, não tem fé. Considero que esses rótulos criam tensão e não é bom para o diálogo propagá-los. Assim como não se pode acusar ninguém de ter perdido a fé, também não se pode acusar outros de terem perdido a caridade. Só Deus sabe disso.
Que devemos fazer?
O que fazer e como agir? Diante da decisão do governo e da aceitação tácita por parte dos bispos de só começar a haver missa pública no fim de Maio, parece haver pouco a fazer. Somos chamados a ser obedientes e vamos ser, certamente. Mas nada nos impede de pensar que deve ser possível repensar esta decisão e termos missas mais cedo. É importante que se saiba que os católicos que pedem para começar a celebrar a Missa antes do fim do mês não estão a ser irresponsáveis; eles sabem bem que deverão seguir regras porque as sabem justas e necessárias. Todos sabemos que devemos ter muitos cuidados e pensar mais nos outros do que em nós mesmos. Isto tem que ver com a responsabilidade social. Aliás, a responsabilidade é um problema que deve preocupar toda a sociedade e não apenas os católicos. Não é justo é pensar que os católicos que vão à Missa são perigosos como os adeptos do futebol, que perdem a cabeça quando há um golo e se abraçam todos! Os católicos estão atentos aos outros. Basta ver como as paróquias, as comunidades religiosas, os jovens e as famílias católicas estão a ser protagonistas na primeira linha da ajuda concreta a quem mais precisa. Além disso, tradição portuguesa mostra que os padres podem ajudar a educar para a responsabilidade muito mais com a Missa pública do que sem ela.
Assim, gostaria de apresentar a proposta que fiz aos nossos bispos:
- Que a Conferência Episcopal, com a colaboração de padres e leigos empenhados em diversas realidades, vendo o que está a ser feito e proposto noutros países, elabore – com a colaboração de alguém da DGS – umas normas a serem aplicadas nas nossas igrejas. Não faço aqui um elenco dessas normas, pois isso requer um outro tipo de documento, mas penso que todos estamos cientes de que deve ser necessário, entre outras questões: assegurar que haverá menos fiéis em cada Missa; ter mais celebrações para distribuir as pessoas por vários horários; assegurar distâncias; ter gel desinfectante, exigir máscaras; limpar frequentemente a Igreja, etc..
- Instituir em cada diocese um grupo de pessoas bem preparadas para aconselhar as paróquias e outras comunidades e ver se se podem organizar – se não todas, muitas – para seguirem as normas que deverão ser estabelecidas.
- Se conseguirmos ter tudo isto preparado, reavaliar a decisão de só termos missa pública no fim de Maio. Assim, estou em crer que, se a Igreja se preparar bem, poderá reunir-se com as autoridades sanitárias no fim da primeira semana ou no início da segunda semana de Maio e, tendo também em conta a avaliação que for feita do que estiver a acontecer em Portugal nessa altura, acordar para que as missas comunitárias comecem já a partir do dia 16/17 de Maio. Mesmo duas ou três semanas mais cedo faz diferença.
Além de tudo isto, e mais importante ainda, temos de manter a nossa fé viva e inflamar os que vão perdendo a relação com Deus para não esmorecerem. As igrejas já estão, muitas delas, quando as condições sanitárias o permitem, abertas. Há padres disponíveis para confessar quando forem solicitados. Os sacrários estão habitados e podem ser visitados, desde que não por muita gente, ao mesmo tempo. E todos somos missionários, pelo que é preciso estar próximo, telefonar, ajudar quem está mais só ou se está a afastar. Se não fizermos nada, a crise espiritual vai-se alastrar e, para muitos, pode ser irremediável.